por Douglas Oliveira Santos e Mauro Ferreira
No ano de 1953, inicia-se a construção de um edifício residencial de dois pavimentos, situado à rua Formosa, n. 135, em lote localizado no meio da quadra entre as ruas deputado Lourenço de Andrade e Santo Antônio, localizada próxima à praça da Igreja Matriz. Este edifício pioneiro traria em seu bojo as principais características defendidas pelos modernistas, tais como a alvenaria independente da estrutura, os brises voltados para a fachada oeste, as linhas retas e a pureza da volumetria, a ausência de adereços decorativos tão caras aos construtores italianos, o uso dos pilotis, o uso do concreto armado, os caixilhos envidraçados seqüencialmente, as paredes curvas com tijolos de vidro e um grande rasgo horizontal das fachadas, conferindo-lhe leveza. O projeto, contratado pelo médico Jorge Jabbur junto a seu irmão, o arquiteto recém-formado pela Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, Dáude Jabbur, tornou-se um marco pelas inovações que apresentou ao pequeno burgo interiorano que era Passos.
Dáude, nascido em Passos em 1928, era o sétimo filho de Abrão Jabbur e Nazer Esper Kallas, uma família de migrantes sírios com atividades no comércio de armarinhos, que aportou em Passos no início dos anos 1920, vinda de Jacuí, provavelmente por conta das possibilidades de expansão de negócios que a chegada da ferrovia estava trazendo para a cidade. A família Jabbur assumiria posição de liderança política e destaque na cidade, pois outro dos irmãos de Dáude, Neif, seria por várias legislaturas eleito deputado, representante da cidade e região na Assembléia Legislativa estadual e na Câmara Federal. Dáude, depois de estudar o segundo grau em Campinas, resolveu estudar arquitetura no Rio de Janeiro, no final dos anos 1940.
A casa projetada por Dáude para seu irmão, embora esteja em boas condições de conservação, sofreu intervenções significativas, com a incorporação do antigo consultório à residência e à eliminação da sacada. Com dois pavimentos, ocupou o lote retangular de forma tradicional, encostando as paredes numa das divisas, a de leste. Afastada da via pública por um recuo ajardinado (inovação que começava a se estabelecer, pois as construções do período anterior eram todas no alinhamento da calçada), separado do passeio por uma vedação com gradil metálico baixo, o projeto foi elaborado e aprovado pela prefeitura em 1954, com uma área construída de 325,78 metros quadrados.
No térreo, estavam dispostas a garage para um único carro (ou seja, já se verificava a necessidade de agenciar espaços exclusivos para o automóvel, que ainda era artigo de luxo), e o consultório médico de Jorge, com acessos independentes. Ali, um programa específico foi definido, em função do atendimento dos pacientes e dos equipamentos de raio-X do médico. Uma inovadora parede curva com tijolos de vidro dava um destaque especial ao consultório, provavelmente inspirada na solução adotada na sede do banco Boa Vista, projetado por Oscar Niemeyer poucos anos antes no Rio de Janeiro.
No pavimento superior, foi previsto o uso residencial, acessível através de uma escada oriunda da garage, com um programa tradicional das famílias burguesas daquele período (sala de estar, copa, cozinha, lavanderia, instalações sanitárias e dormitórios), com a previsão de uma sacada sobre laje impermeabilizada, voltada para a via pública, também uma solução pouco usual na época.
Após a construção da casa de seu irmão, Dáude elaborou outro projeto importante para a história da arquitetura local: o primeiro edifício alto da cidade, um arranha-céus com nove pavimentos, localizado na praça da Matriz, à rua Antônio Carlos (edifício Abrão Jabbur). Também iniciativa de sua família, principalmente de seu irmão Neif, que obteve um financiamento para o prédio junto à Caixa Econômica Federal, foi iniciado em 1962 e inaugurado em setembro de 1965, também trazia em seu bojo o pioneirismo na aplicação de cânones do modernismo na cidade. Suas obras trazem nítida influência dos postulados corbusianos e da chamada “escola carioca” da arquitetura modernista, como a eliminação das formas decorativas externas típicas do artesanato, a subordinação dos aspectos estéticos à uma produção racionalizada e repetitiva. No início, trazia ainda a planta livre, com uma nítida separação entre a estrutura e as paredes de vedação, introduzindo também o pilotis em “v” no térreo do edifício (recurso também utilizado por Oscar Niemeyer em vários edifícios que construiu no Rio de Janeiro e em São Paulo), os brises para proteger do sol da tarde na face voltada para a praça da Matriz (embora de pequena dimensão), as janelas envidraçadas contínuas, o uso intensivo do concreto armado a demonstrar suas amplas possibilidades técnicas e estéticas. Aspectos comerciais para a viabilização econômica do empreendimento levaram à alteração da planta original, apenas comercial, para adaptar apartamentos com uso residencial.
Além destas edificações, Dáude fez os estudos para a implantação da sede social do Clube Passense de Natação – CPN, onde os grandes vãos do salão foram imaginados com a cobertura de telhas em concreto protendido. Deixou ainda o projeto para o prédio da nova rodoviária da cidade, que nunca chegou a ser concluída, a área e o prédio inacabado foram cedidos pela prefeitura à FESP, que ali instalou seus laboratórios. Seu falecimento precoce, em 1970 no Rio de Janeiro, onde vivia, interrompeu repentinamente sua carreira, mas a obra construída por Dáude Jabbur na cidade de Passos apresenta, sem dúvida, um inegável pioneirismo e de grande importância para a preservação da memória local de sua arquitetura.
As cidades brasileiras, principalmente a partir da construção de Brasília, sofreram um forte impacto em sua paisagem urbana dos processos e métodos construtivos e das novas tipologias adotadas pela chamada arquitetura modernista brasileira. Nas cidades de porte médio localizadas em áreas distantes dos grandes centros, como Passos, esse impacto ainda não foi considerado nos estudos existentes, tornando-se uma lacuna na historiografia das técnicas de construção e da própria história da localidade.
É necessário, portanto, localizar e analisar as tipologias e as condições construtivas nestas cidades, especialmente em relação a seus aspectos culturais e materiais, que impactaram a construção de novas edificações a partir dos anos 1950 para diversos usos, como moradias, empreendimentos comerciais e industriais, instituições públicas, gerando novos modos de fazer as edificações e de viver.
Ao localizar e analisar as tipologias, os sistemas construtivos, as técnicas e os materiais utilizados, poderão ser estabelecidos os padrões construtivos utilizados, as inovações introduzidas, auxiliando os organismos públicos de preservação do patrimônio cultural a definir novos padrões e parâmetros para efetivar a preservação destas edificações mais recentes, que devem desde já ser objeto de estudo para se evitar sua deterioração, evitando-se que aconteça com estas obras, no caso específico de Passos, o que aconteceu com boa parte do patrimônio material da cidade, que se perdeu em parte por falta de conhecimento.
A Arquitetura Modernista e a Construção
O advento da arquitetura moderna no país representou um duplo desafio para a construção brasileira: de um lado, introduziu uma nova linguagem arquitetônica e, ao mesmo tempo, requereu uma modernização da sua produção, com novos materiais, novos sistemas construtivos e tecnologias do processo de produção.
A arquitetura moderna chegou ao Brasil principalmente pela migração e pelo intercâmbio proporcionado pela visita de arquitetos e pensadores europeus, ao lado de uma certa pujança econômica advinda do desejo governamental de “modernizar”o país, durante a década de 1930. Ao mesmo tempo, o intercâmbio e a proximidade com os Estados Unidos, em função da política de boa vizinhança ocasionada pela II Guerra Mundial, também foram elementos que propiciaram a afirmação da primeira geração de arquitetos modernistas brasileiros, principalmente Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.
Foi sem dúvida o arquiteto carioca Oscar Niemeyer o grande responsável pela criação de uma linguagem própria e que fornecia novas opções para o racionalismo vigente, diferentemente de outros países, que produziam uma arquitetura anônima e impessoal. Uma das características mais positivas da arquitetura modernista brasileira foi o domínio absoluto da tecnologia do concreto armado, que levaram a uma situação onde a estrutura resolvida já fazia surgir a arquitetura do edifício, um desafio que foi levado adiante por engenheiros calculistas que eram sensíveis às propostas de Niemeyer e de outros arquitetos do mesmo período, como Affonso Reidy, Sérgio Bernardes e Vilanova Artigas.
Ao mesmo tempo, o contexto histórico onde se implantou a arquitetura moderna forneceu condições específicas para que esta nova arquitetura se consolidasse: na década de 1930, o governo de Getúlio Vargas e o Estado Novo desejavam deixar marcas na paisagem urbana, em especial da capital do país, o Rio de Janeiro, para isso construíram equipamentos públicos e sedes de organismos governamentais da administração pública. A influência das idéias do arquiteto francês Le Corbusier sobre Lúcio Costa, advindas de suas duas passagens pelo Brasil, fazendo conferências e depois no projeto do prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, foram decisivas para a causa modernista. Lúcio, que havia sido diretor da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, imprimiu uma ação modernizadora do ensino de arquitetura, mas foi logo demitido sob pressão dos conservadores. Posteriormente, convocado pelo governo para elaborar o projeto do Ministério, Lúcio Costa exigiu a convocação de uma equipe de jovens arquitetos modernistas, dentre os quais estava Oscar Niemeyer, cujo sucesso foi decisivo para o movimento moderno de arquitetura. Os “cinco pontos da arquitetura nova” preconizados por Le Corbusier, o volume construído elevado em pilotis, planta livre com estrutura independente, fachada livre, janelas dispostas na horizontal e o terraço-jardim, passaram a ser canônicos, e seu atendimento significava equacionar uma série de condicionantes inéditos para a tecnologia e para a rotina da construção na época.
O processo de urbanização de Passos
A cidade de Passos se situa no universo das cidades mineiras de porte médio que não passaram por um processo de metropolização, tornando-se pólo isolado de urbanização em vasta região mineira. Localizada na região sudoeste do estado, próxima à fronteira com o estado de São Paulo, sua população já ultrapassou os cem mil habitantes. Sua economia tem predominância agro-industrial, incluindo setores da indústria alimentícia e do vestuário, embora o peso da produção leiteira ainda seja significativo. Sua história esteve inicialmente vinculada à extração do ouro e à pecuária extensiva, como ponto de apoio da rota de tropeiros entre o sul de Minas e o Triângulo Mineiro, resultando numa ocupação urbana bastante rarefeita até os anos 1920. O processo de urbanização foi bastante lento em função da predominância das atividades rurais, base de sua economia, sobre as urbanas. Durante o século XIX, sua vida urbana foi modificada pela introdução da cultura do café, que permitiu a cidade melhorar sua infra-estrutura e o surgimento e o fortalecimento de atividades de comércio e de pequenas indústrias. Desta cidade, rapidamente destruída diante do processo de modernização, quase nada restou, e mesmo da cidade de tijolos há poucos exemplares dignos de nota.
Do ponto de vista do seu território, o acelerado crescimento urbano das duas últimas décadas resultou numa ocupação extensiva e difusa com baixa densidade populacional, permitindo a constituição de enormes vazios urbanos (cerca de 30% do seu território urbano é constituído de lotes vagos), que tem apresentado dificuldades de manutenção e expansão de serviços pelo setor público.
Passos foi elevada à categoria de cidade em 1856, mas a ocupação da região é anterior, data do final do século XVII, quando os intrantes mineiros, na feliz descrição de Carlos Lemos, realizaram um “torna-viagem”, lançando-se à efetiva ocupação do antigo “Caminho dos Goyazes”, a rota do Anhanguera.
O processo de urbanização, embora lento nas primeiras décadas do século XX, trouxe para a cidade necessidades novas, desde a construção de novas edificações com novos programas de uso como a instalação de infra-estrutura adequada às demandas da cidade em crescimento. A velha cidade das faisqueiras do período imperial, construída de taipa e pau-a-pique, foi lentamente substituída pela cidade de tijolos no período republicano, substituição acelerada a partir da chegada da ferrovia em 1922, quando começaram a chegar os imigrantes italianos e a possibilidade de trazer novos materiais e modelos construtivos, introduzindo também novos modos de viver.
Neste período, do final do século XIX até a década de 30 do século XX, houve a participação dos construtores de origem italiana nas construções da burguesia agrária local, cuja contribuição ainda é bastante visível na paisagem urbana local, especialmente nas regiões centrais e de urbanização mais antiga. Os fluxos e pulsos da forma como ocorreu esta urbanização são bastante visíveis na paisagem urbana: a ocupação mais densa no entorno da igreja matriz, localizada em encosta e sitiada por extensa rede hidrográfica, os braços da expansão estendidos rumo ao cemitério, à estação ferroviária, às saídas para o rio Grande e para o Triângulo mineiro, bem como para a capital de Minas Gerais e para o estado de São Paulo.
A partir dos anos 40, obras art-déco e proto-modernas, como a agência dos Correios e Telégrafos começaram a ser construídas pela cidade, introduzindo a estrutura em concreto armado e vãos internos maiores, principalmente em edifícios comerciais. Mas pode-se afirmar que foi nos anos 1950 que, com a formatura do arquiteto Dáude Jabbur no Rio de Janeiro, que a arquitetura modernista iniciou sua trajetória em Passos.
Este período anterior ao modernismo, bastante rico em sua arquitetura, tem sido incompreendido pelos proprietários destes imóveis, pois sua manutenção tem sido inadequada e as reformas e demolições se sucedem sem que o poder público e a própria sociedade se dêem conta do desmonte que está ocorrendo de um aspecto importante de sua identidade. Pior ainda, este mesmo desprezo a um importante aspecto do patrimônio e da sua identidade cultural está sendo remetido a outro período da arquitetura e da paisagem de Passos, o período desenvolvimentista de JK, os anos 1950 e 1960.
A introdução da arquitetura modernista em Passos
É necessário, portanto, localizar e analisar as tipologias e as condições construtivas nestas cidades, especialmente em relação a seus aspectos culturais e materiais, que impactaram a construção de novas edificações a partir dos anos 1950 para diversos usos, como moradias, empreendimentos comerciais e industriais, instituições públicas, gerando novos modos de fazer as edificações e de viver.
Ao localizar e analisar as tipologias, os sistemas construtivos, as técnicas e os materiais utilizados, poderão ser estabelecidos os padrões construtivos utilizados, as inovações introduzidas, auxiliando os organismos públicos de preservação do patrimônio cultural a definir novos padrões e parâmetros para efetivar a preservação destas edificações mais recentes, que devem desde já ser objeto de estudo para se evitar sua deterioração, evitando-se que aconteça com estas obras, no caso específico de Passos, o que aconteceu com boa parte do patrimônio material da cidade, que se perdeu em parte por falta de conhecimento.
A Arquitetura Modernista e a Construção
O advento da arquitetura moderna no país representou um duplo desafio para a construção brasileira: de um lado, introduziu uma nova linguagem arquitetônica e, ao mesmo tempo, requereu uma modernização da sua produção, com novos materiais, novos sistemas construtivos e tecnologias do processo de produção.
A arquitetura moderna chegou ao Brasil principalmente pela migração e pelo intercâmbio proporcionado pela visita de arquitetos e pensadores europeus, ao lado de uma certa pujança econômica advinda do desejo governamental de “modernizar”o país, durante a década de 1930. Ao mesmo tempo, o intercâmbio e a proximidade com os Estados Unidos, em função da política de boa vizinhança ocasionada pela II Guerra Mundial, também foram elementos que propiciaram a afirmação da primeira geração de arquitetos modernistas brasileiros, principalmente Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.
Foi sem dúvida o arquiteto carioca Oscar Niemeyer o grande responsável pela criação de uma linguagem própria e que fornecia novas opções para o racionalismo vigente, diferentemente de outros países, que produziam uma arquitetura anônima e impessoal. Uma das características mais positivas da arquitetura modernista brasileira foi o domínio absoluto da tecnologia do concreto armado, que levaram a uma situação onde a estrutura resolvida já fazia surgir a arquitetura do edifício, um desafio que foi levado adiante por engenheiros calculistas que eram sensíveis às propostas de Niemeyer e de outros arquitetos do mesmo período, como Affonso Reidy, Sérgio Bernardes e Vilanova Artigas.
Ao mesmo tempo, o contexto histórico onde se implantou a arquitetura moderna forneceu condições específicas para que esta nova arquitetura se consolidasse: na década de 1930, o governo de Getúlio Vargas e o Estado Novo desejavam deixar marcas na paisagem urbana, em especial da capital do país, o Rio de Janeiro, para isso construíram equipamentos públicos e sedes de organismos governamentais da administração pública. A influência das idéias do arquiteto francês Le Corbusier sobre Lúcio Costa, advindas de suas duas passagens pelo Brasil, fazendo conferências e depois no projeto do prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro, foram decisivas para a causa modernista. Lúcio, que havia sido diretor da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, imprimiu uma ação modernizadora do ensino de arquitetura, mas foi logo demitido sob pressão dos conservadores. Posteriormente, convocado pelo governo para elaborar o projeto do Ministério, Lúcio Costa exigiu a convocação de uma equipe de jovens arquitetos modernistas, dentre os quais estava Oscar Niemeyer, cujo sucesso foi decisivo para o movimento moderno de arquitetura. Os “cinco pontos da arquitetura nova” preconizados por Le Corbusier, o volume construído elevado em pilotis, planta livre com estrutura independente, fachada livre, janelas dispostas na horizontal e o terraço-jardim, passaram a ser canônicos, e seu atendimento significava equacionar uma série de condicionantes inéditos para a tecnologia e para a rotina da construção na época.
O processo de urbanização de Passos
A cidade de Passos se situa no universo das cidades mineiras de porte médio que não passaram por um processo de metropolização, tornando-se pólo isolado de urbanização em vasta região mineira. Localizada na região sudoeste do estado, próxima à fronteira com o estado de São Paulo, sua população já ultrapassou os cem mil habitantes. Sua economia tem predominância agro-industrial, incluindo setores da indústria alimentícia e do vestuário, embora o peso da produção leiteira ainda seja significativo. Sua história esteve inicialmente vinculada à extração do ouro e à pecuária extensiva, como ponto de apoio da rota de tropeiros entre o sul de Minas e o Triângulo Mineiro, resultando numa ocupação urbana bastante rarefeita até os anos 1920. O processo de urbanização foi bastante lento em função da predominância das atividades rurais, base de sua economia, sobre as urbanas. Durante o século XIX, sua vida urbana foi modificada pela introdução da cultura do café, que permitiu a cidade melhorar sua infra-estrutura e o surgimento e o fortalecimento de atividades de comércio e de pequenas indústrias. Desta cidade, rapidamente destruída diante do processo de modernização, quase nada restou, e mesmo da cidade de tijolos há poucos exemplares dignos de nota.
Do ponto de vista do seu território, o acelerado crescimento urbano das duas últimas décadas resultou numa ocupação extensiva e difusa com baixa densidade populacional, permitindo a constituição de enormes vazios urbanos (cerca de 30% do seu território urbano é constituído de lotes vagos), que tem apresentado dificuldades de manutenção e expansão de serviços pelo setor público.
Passos foi elevada à categoria de cidade em 1856, mas a ocupação da região é anterior, data do final do século XVII, quando os intrantes mineiros, na feliz descrição de Carlos Lemos, realizaram um “torna-viagem”, lançando-se à efetiva ocupação do antigo “Caminho dos Goyazes”, a rota do Anhanguera.
O processo de urbanização, embora lento nas primeiras décadas do século XX, trouxe para a cidade necessidades novas, desde a construção de novas edificações com novos programas de uso como a instalação de infra-estrutura adequada às demandas da cidade em crescimento. A velha cidade das faisqueiras do período imperial, construída de taipa e pau-a-pique, foi lentamente substituída pela cidade de tijolos no período republicano, substituição acelerada a partir da chegada da ferrovia em 1922, quando começaram a chegar os imigrantes italianos e a possibilidade de trazer novos materiais e modelos construtivos, introduzindo também novos modos de viver.
Neste período, do final do século XIX até a década de 30 do século XX, houve a participação dos construtores de origem italiana nas construções da burguesia agrária local, cuja contribuição ainda é bastante visível na paisagem urbana local, especialmente nas regiões centrais e de urbanização mais antiga. Os fluxos e pulsos da forma como ocorreu esta urbanização são bastante visíveis na paisagem urbana: a ocupação mais densa no entorno da igreja matriz, localizada em encosta e sitiada por extensa rede hidrográfica, os braços da expansão estendidos rumo ao cemitério, à estação ferroviária, às saídas para o rio Grande e para o Triângulo mineiro, bem como para a capital de Minas Gerais e para o estado de São Paulo.
A partir dos anos 40, obras art-déco e proto-modernas, como a agência dos Correios e Telégrafos começaram a ser construídas pela cidade, introduzindo a estrutura em concreto armado e vãos internos maiores, principalmente em edifícios comerciais. Mas pode-se afirmar que foi nos anos 1950 que, com a formatura do arquiteto Dáude Jabbur no Rio de Janeiro, que a arquitetura modernista iniciou sua trajetória em Passos.
Este período anterior ao modernismo, bastante rico em sua arquitetura, tem sido incompreendido pelos proprietários destes imóveis, pois sua manutenção tem sido inadequada e as reformas e demolições se sucedem sem que o poder público e a própria sociedade se dêem conta do desmonte que está ocorrendo de um aspecto importante de sua identidade. Pior ainda, este mesmo desprezo a um importante aspecto do patrimônio e da sua identidade cultural está sendo remetido a outro período da arquitetura e da paisagem de Passos, o período desenvolvimentista de JK, os anos 1950 e 1960.
A introdução da arquitetura modernista em Passos
No ano de 1953, inicia-se a construção de um edifício residencial de dois pavimentos, situado à rua Formosa, n. 135, em lote localizado no meio da quadra entre as ruas deputado Lourenço de Andrade e Santo Antônio, localizada próxima à praça da Igreja Matriz. Este edifício pioneiro traria em seu bojo as principais características defendidas pelos modernistas, tais como a alvenaria independente da estrutura, os brises voltados para a fachada oeste, as linhas retas e a pureza da volumetria, a ausência de adereços decorativos tão caras aos construtores italianos, o uso dos pilotis, o uso do concreto armado, os caixilhos envidraçados seqüencialmente, as paredes curvas com tijolos de vidro e um grande rasgo horizontal das fachadas, conferindo-lhe leveza. O projeto, contratado pelo médico Jorge Jabbur junto a seu irmão, o arquiteto recém-formado pela Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, Dáude Jabbur, tornou-se um marco pelas inovações que apresentou ao pequeno burgo interiorano que era Passos.
Dáude, nascido em Passos em 1928, era o sétimo filho de Abrão Jabbur e Nazer Esper Kallas, uma família de migrantes sírios com atividades no comércio de armarinhos, que aportou em Passos no início dos anos 1920, vinda de Jacuí, provavelmente por conta das possibilidades de expansão de negócios que a chegada da ferrovia estava trazendo para a cidade. A família Jabbur assumiria posição de liderança política e destaque na cidade, pois outro dos irmãos de Dáude, Neif, seria por várias legislaturas eleito deputado, representante da cidade e região na Assembléia Legislativa estadual e na Câmara Federal. Dáude, depois de estudar o segundo grau em Campinas, resolveu estudar arquitetura no Rio de Janeiro, no final dos anos 1940.
A casa projetada por Dáude para seu irmão, embora esteja em boas condições de conservação, sofreu intervenções significativas, com a incorporação do antigo consultório à residência e à eliminação da sacada. Com dois pavimentos, ocupou o lote retangular de forma tradicional, encostando as paredes numa das divisas, a de leste. Afastada da via pública por um recuo ajardinado (inovação que começava a se estabelecer, pois as construções do período anterior eram todas no alinhamento da calçada), separado do passeio por uma vedação com gradil metálico baixo, o projeto foi elaborado e aprovado pela prefeitura em 1954, com uma área construída de 325,78 metros quadrados.
No térreo, estavam dispostas a garage para um único carro (ou seja, já se verificava a necessidade de agenciar espaços exclusivos para o automóvel, que ainda era artigo de luxo), e o consultório médico de Jorge, com acessos independentes. Ali, um programa específico foi definido, em função do atendimento dos pacientes e dos equipamentos de raio-X do médico. Uma inovadora parede curva com tijolos de vidro dava um destaque especial ao consultório, provavelmente inspirada na solução adotada na sede do banco Boa Vista, projetado por Oscar Niemeyer poucos anos antes no Rio de Janeiro.
No pavimento superior, foi previsto o uso residencial, acessível através de uma escada oriunda da garage, com um programa tradicional das famílias burguesas daquele período (sala de estar, copa, cozinha, lavanderia, instalações sanitárias e dormitórios), com a previsão de uma sacada sobre laje impermeabilizada, voltada para a via pública, também uma solução pouco usual na época.
Após a construção da casa de seu irmão, Dáude elaborou outro projeto importante para a história da arquitetura local: o primeiro edifício alto da cidade, um arranha-céus com nove pavimentos, localizado na praça da Matriz, à rua Antônio Carlos (edifício Abrão Jabbur). Também iniciativa de sua família, principalmente de seu irmão Neif, que obteve um financiamento para o prédio junto à Caixa Econômica Federal, foi iniciado em 1962 e inaugurado em setembro de 1965, também trazia em seu bojo o pioneirismo na aplicação de cânones do modernismo na cidade. Suas obras trazem nítida influência dos postulados corbusianos e da chamada “escola carioca” da arquitetura modernista, como a eliminação das formas decorativas externas típicas do artesanato, a subordinação dos aspectos estéticos à uma produção racionalizada e repetitiva. No início, trazia ainda a planta livre, com uma nítida separação entre a estrutura e as paredes de vedação, introduzindo também o pilotis em “v” no térreo do edifício (recurso também utilizado por Oscar Niemeyer em vários edifícios que construiu no Rio de Janeiro e em São Paulo), os brises para proteger do sol da tarde na face voltada para a praça da Matriz (embora de pequena dimensão), as janelas envidraçadas contínuas, o uso intensivo do concreto armado a demonstrar suas amplas possibilidades técnicas e estéticas. Aspectos comerciais para a viabilização econômica do empreendimento levaram à alteração da planta original, apenas comercial, para adaptar apartamentos com uso residencial.
Além destas edificações, Dáude fez os estudos para a implantação da sede social do Clube Passense de Natação – CPN, onde os grandes vãos do salão foram imaginados com a cobertura de telhas em concreto protendido. Deixou ainda o projeto para o prédio da nova rodoviária da cidade, que nunca chegou a ser concluída, a área e o prédio inacabado foram cedidos pela prefeitura à FESP, que ali instalou seus laboratórios. Seu falecimento precoce, em 1970 no Rio de Janeiro, onde vivia, interrompeu repentinamente sua carreira, mas a obra construída por Dáude Jabbur na cidade de Passos apresenta, sem dúvida, um inegável pioneirismo e de grande importância para a preservação da memória local de sua arquitetura.
(Douglas Oliveira Santos é estudante de Engenharia Civil na FESP, e escreveu o artigo em conjunto Dr. Mauro Ferreira, seu orientador. )