Por Ivan Vasconcellos (Texto publicado na Revista Folha, edição de Junho)
A cada dia que passa, fica mais nítida a impressão de que a Administração Municipal vem perdendo o controle sobre a urbanização da cidade. Não digo esta gestão, especificamente - que até tem profissionais comprometidos com a qualidade do crescimento urbano - mas a Administração no sentido mais amplo, institucional.
Como integrante da cadeia produtiva da construção civil, posso compreender a maioria dos aspectos envolvidos nesta questão, sejam de ordem técnica, política ou econômica. Aqui, se conclamarmos a atirar a primeira pedra quem nunca tiver infringido nenhuma norma, vão sobrar pedras.
Desrespeitos de toda ordem ao Plano Diretor, ao Código de Obras, ao Código de Parcelamento do Solo multiplicam-se num processo de metástase, onde os erros edificados justificam novas infrações. Canso-me de ouvir clientes questionando por que devem respeitar determinada norma, se o vizinho não respeitou e nunca lhe aconteceu nada. Ou por que ele tem que prever tantas vagas de garagem, se a construção recém inaugurada ao lado não tem nenhuma.
Assim, vão crescendo os casos de estabelecimentos que transformam a calçada em varanda, com pilares e telhado de barro, para vender toda a sorte de produtos. Temos caso de residências que se apossaram da calçada, erguendo seu muro frontal sobre a guia da sarjeta, de edificações novas cujo segundo pavimento avança sobre o alinhamento, de portões de garagem que engoliram parte da calçada para que coubessem veículos particulares. Também são muitas as edificações que ocupam 100% do lote, sem se preocupar com a taxa de ocupação permitida e muito menos com os 20% que devem ser mantidos permeáveis. Há casos onde o proprietário construiu duas casas num mesmo lote, comprometendo até mesmo a salubridade em função da máxima ocupação; se a moda pega, com o incentivo do governo e a ganância dos construtores vai ser uma lambança urbana. Apesar de o Código exigir vagas de garagem de acordo com a área da construção, mais de 90% das lojas da Avenida Comendador Avelino Maia, muitas ainda em construção, não têm nenhuma. Existem edifícios sendo construídos na área central, onde a escassez é ainda pior, também sem vagas. Na Av. Arlindo Figueiredo, uma a uma, as construções vão sendo erguidas sem afastamento, deixando como área de estacionamento apenas o passeio mais largo; quando no futuro esta área começar a ser utilizada por clientes, não vai sobrar espaço para os pedestres, que serão obrigados a caminhar pelo leito da avenida. Na área dos loteamentos, esqueceu-se que as diretrizes primárias de arruamentos e áreas institucionais devem ser estabelecidos pela Prefeitura; assim crescem os loteamentos cujas ruas não dão sequência à malha existente ou que reservam para as áreas institucionais grotas impossíveis de serem ocupadas.
Mas e então, como fica a cidade? Já que existem precedentes de todo o tipo, não há mais o que fazer? Perdido por um, perdido por mil?
A operação Cidade Limpa, implementada na cidade de São Paulo é um bom exemplo de que o esforço pela melhoria urbana vale a pena, e nos encoraja a pensar que ainda há forma de corrigir a situação. Demanda tempo, como toda forma de planejamento urbano, mas dará resultados a médio e longo prazo.
A medida mais urgente seria proceder a uma criteriosa revisão do Plano Diretor e dos Códigos de Obras e Parcelamento do Solo, a fim de se avaliar a pertinência, validade e aplicabilidade de cada exigência, para que não seja necessário fazer vista grossa para aspectos que realmente não tenham muita relevância. O caso das vagas para lojas na Avenida Comendador seria um exemplo interessante a ser reavaliado, definindo critérios mais coerentes para a exigência; em contrapartida, a ocupação da Arlindo Figueiredo deveria rigorosamente normatizada, pensando no crescimento futuro da cidade. Durante o processo de revisão, ou estabelecem-se regras especiais de transição ou suspende-se a aprovação de projetos na área, para que não haja uma corrida pela irregularidade.
Feitas estas revisões, com a participação efetiva de todos os interessados, o próximo passo seria a proclamação de um pacto urbano a partir do que não se aceitaria mais nenhuma infração sob alegação de existência de infração similar. Quem burlou, burlou; quem não burlou, não burla mais. De agora em diante, os novos empreendimentos e edificações passam a ter que cumprir integralmente o disposto na lei e as obras irregulares existentes não poderão ser ampliadas ou reformadas sem corrigir ou eliminar as inadequações. Para garantir o cumprimento do pacto, será necessário um fortalecimento do setor de fiscalização da prefeitura e mesmo o estabelecimento de convênios com associações de profissionais das área de projeto e construção, para um acompanhamento de perto no processo de aprovação de projetos e liberação de habite-se e alvarás. As eventuais infrações deverão ser autuadas exemplarmente, na forma da lei e de forma rápida e transparente, sem intervenções de apadrinhamento político ou de poder econômico. Paralelamente, a valorização do Conselho da Cidade e implementação de mudanças no Grupo Técnico de Análise poderá fornecer valiosa colaboração para o sucesso deste Pacto, dificultando a aprovação de projetos em desconformidade com a lei.
(Ivan Vasconcellos, arquiteto: ivan.vasc@terra.com.br)